Animes não são genuínos.

Animes não são realistas, ponto. Normalmente, sequer tentam, afinal o fator animação permite a exploração de determinados aspectos que não seriam passíveis de serem retratados em outras mídias, e, no entanto, existem obras que tentam reproduzir idiossincrasias humanas, seja de forma parcial, focalizada ou totalmente fiel à realidade. Parte do charme, inclusive, está em apresentar particularidades facilmente destacáveis e dignas de empatia enquanto ainda concebe um universo completamente fictício. O problema, contudo, é que poucos são os animes que conseguem representar características reais naturalmente. Em geral, trata-se apenas de uma paródia, caricatura ou algo simplificado, sendo que, quando a pretensão é explicitar tais pormenores fidedignamente, acaba transparecendo-se como exatamente isso: pretensioso.


➥ Nuances.


Endereçando aos poucos, conceituar maneirismos de maneira focalizada ou parcial é consideravelmente simples, e praticamente qualquer anime consegue fazer (a não ser que ele seja muito ruim, ou propositalmente desconexo da realidade), sendo essa a forma a qual a maioria das obras encontram de denotar um senso de empatia e identificação por parte da audiência. Não se faz necessário muito esforço, uma vez que simplesmente ao replicar determinadas ações, falas ou simplificações de características, o público capta o quadro geral do que deveria ser passado. Exemplificando, apenas em ver um personagem sorrir já é possível interpretar que ele está feliz ou divertindo-se, etc. Considerando que não podemos adentrar nos pensamentos do protagonista (há casos em que isso é possível, porém tratarei disso separadamente), a maioria dos animes (e, sendo justo, das obras de ficção em geral também) falham em aprofundar personalidades e motivações ao ignorar nuances intrínsecas à realidade, em prol de algo mais dinâmico para a audiência. Optam por conveniências, que, embora facilitem no quesito compreensão e interpretação, são preguiçosas e debilitantes no âmbito da congruência narrativa. É imensamente mais fácil externar oralmente que “x” personagem perdeu seu pai há alguns meses do que construir cenas em que ele come uma refeição apenas na companhia da mãe, ao mesmo tempo em que demonstra certa melancolia. Talvez denotando em meio ao cenário uma foto emoldurada ao fundo que mostra a família completa, dando a entender que falta alguém naquele ambiente. É isso o que diferencia uma obra boa de uma genérica: se ela prefere se desenvolver embasando-se em detalhes mostrados e, assim sendo, confiando que o público entenderá tal construção quando ela for relevante ao enredo ou simplesmente fomentar desenvolvimento por meio de exposição oral injustificada. Contudo, o queridinho de todo roteirista ruim é o diálogo expositivo, e, elaborando em cima desse cenário imaginário que acabei por criar, a informação "personagem ‘x’ perdeu seu pai" provavelmente seria revelada através da mãe perguntando ou comentando sobre em voz alta apenas porque sim, ou então, ainda pior, com um narrador (elemento extremamente genérico, porém bastante comum em anime) ressaltando tal fato quando fosse conveniente, e, se ele estiver duvidando muito da inteligência dos espectadores, inclusive repetindo algumas vezes. Animes, em especial, usam e abusam de diálogos expositivos, e, conquanto alguns consigam efetivamente respaldar tais diálogos (utilizando-os em situações em que faz sentido expor tal informação aos demais personagens, ou através de um diálogo plausível e não puramente de evidenciação), a maior parte simplesmente forja construções com exposição infundada, tornando os desenvolvimentos conseguintes artificiais e, voltando ao tema, pouquíssimo realistas. Assim sendo, animações japonesas conseguem mais ou menos reproduzir aspectos humanos reais, mas sem nunca chegar sequer perto de ser fiel à realidade (no caso, antes que se crie algum mal-entendido, ter um enredo fantasioso ou não é irrelevante para que a obra seja "fiel à realidade", pois estava referindo-me somente à habilidade, ou a falta dela, de replicar características do ser humano).


➥ Diálogos mentais.


"Diálogos" mentais alternam a perspectiva. Quando não se podia ouvir os pensamentos dos personagens, uma construção boa e "realista" (dentro dos limites já mencionados) se denotava pelos detalhes e contexto implícito, sendo que a maneira de perceber tais particularidades seria observando, assim como podemos observar uma pessoa no mundo real e, dessa forma, descobrir mais sobre ela. No entanto, agora podendo saber o que se passa na mente do protagonista, a análise deveria ser feita levando em conta interioridades ao invés de exterioridades. "Como eu penso" ao invés de "como ele age". Nesse sentido, animes normalmente falham feio, mas por opção própria a fim de algo mais dinâmico. Optam, novamente, por uma estratégia conveniente, que facilita a compreensão e interpretação, mas que é preguiçosa e debilitante no âmbito da congruência narrativa, isto é, adaptam os pensamentos a uma quase narração, que simplesmente não acontece na vida real. Raciocine a respeito: não lhe ocorre o pensamento "estou triste". Se por acaso está triste, meramente se sente triste, e é exatamente esse tipo de sutileza que é completamente perdida em tais adaptações, gerando pretexto para "diálogos" expositivos (da mente em questão com o público) e narrações, só que agora adentro na mente de x personagem, como se fosse menos genérico ou se justificasse. Tal elemento dificilmente é bem utilizado, e, mesmo quando esse é o caso, ainda ocorrem deslizes. Em “PPTA”, por exemplo, geralmente tal recurso é satisfatoriamente desenvolvido, além de permitir certa profundidade, muitas vezes ambígua, aos personagens. Todavia, há partes em que esses "pensamentos" deixam de ser propositados e, principalmente, plausíveis, seja por explicar coisas que poderíamos ter interpretado nas ações dos intérpretes, por inserir/citar informações que já tinham sido ditas ou por se aproximar de um melodrama em algumas passagens consideravelmente clichês, tornando-se apenas expositivos, o que também caracterizaria tais trechos como genéricos.


Depressão.


Na ficção, geralmente há um certo mito de que, quanto maior a veemência da condição denominada depressão (o distúrbio mental diagnosticado por um especialista, e não o que adolescente mimado diz ter quando o pai não compra ingressos para o concerto que ele gostaria de ir), mais dramática ou exasperada a pessoa ficaria, enquanto, na realidade, acontece o oposto. Em intensidade classificada como grave, o transtorno proporcionaria ao "portador" uma sensação de indisposição ao extremo e concernente a tudo, dessa forma incapacitando-o de performar até mesmo a mais básica das atividades cotidianas. Nesse sentido, percebe-se que depressão é o contrário de algo espalhafatoso, embora costume ser retratado dessa forma almejando determinado nível de sensacionalismo dramático.


Referência:

Depressão (sintomas, diagnóstico, etc.): https://www.google.com/amp/s/saude.abril.com.br/medicina/depressao-sintomas-diagnostico-prevencao-e-tratamento/amp/


“Sangatsu no Lion”.


Ao invés de tentar romantizar (para o bem ou para o mal) a condição de depressão e ansiedade do protagonista, a obra meramente a retrata. Há sim algumas partes em que diálogos/pensamentos podem ser classificados como idiotas/desnecessários (por não serem plausíveis), mas, em geral, é apresentado uma representação bastante acreditável. Embora seja utilizado como um recurso similar a um narrador, os "monólogos" do protagonista raramente se transparecem como genéricos, pois, apesar de relativamente teatrais, normalmente não são pretensiosos, o que ajuda a elevar o sentimento de realidade. Não emula nada com perfeição, porém, simplesmente ao optar por reproduzir o transtorno através de detalhes e maneirismos contidos em ações, ganha uma camada interpretativa que adiciona muito à experiência de analisar o estado emocional debilitado do personagem.


Obviamente, imperfeito.


Pois é, mesmo ao distribuir elogios, ainda há várias ressalvas a serem feitas (tanto que o tópico anterior ficou um tanto travado). Em contrapartida, a segunda temporada da obra perde completamente qualquer senso de discrição que a primeira dispunha, e, nesse sentido, vale a pena distinguir detalhadamente as diferenças entre o que foi feito certo e errado (sendo esse o motivo pelo qual evitei especificar os "acertos com ressalvas" da primeira temporada).


Basicamente, as duas temporadas adotam uma linguagem de “storytelling” dinâmica para o público, mas, ainda assim, pautada na realidade, tentando transparecer características, sensações e motivações dos personagens através de detalhes ou diálogos teoricamente verossímeis. No entanto, a obra muitas vezes avança na narrativa ignorando a regra de ouro "mostre, não conte", seja através de uma narração preguiçosa do protagonista, de diálogos pouco plausíveis, etc. Ambas as temporadas carregam tais aspectos, sendo que a real diferença está na recorrência em que essas falhas se manifestam e na quantidade de pontos contrapondo os defeitos, compensando-os e ofuscando-os. A primeira temporada tem a vantagem de estar apresentando os personagens, portanto consegue direcionar a expectativa do público durante todo o desenrolar do enredo. Por ainda estarmos conhecendo-os, as ações de cada intérprete carregam um ar emblemático e levemente ambíguo. Omitindo determinados elementos, deixando para introduzi-los posteriormente, o anime realiza a difícil tarefa de estender a história sem parecer se arrastar. Apresenta o protagonista não falando muito sobre sua personalidade (embora evidencie desnecessariamente determinadas informações, tal qual a percepção que ele tem de terceiros, por meio de narração), denotando-a na forma como age frente às situações que o cercam. Desenvolve-o também dessa maneira, porém, novamente, sente a necessidade de reafirmar tudo o que mostra por intermédio de monólogos e outras particularidades narrativas que dinamizam o enredo ao mesmo tempo que aleijam o potencial interpretativo dele. Conta uma história ao invés de mostrar uma história. Contraditório com o que eu disse no tópico anterior? Se está, então esclareci corretamente a dicotomia avistada na obra. Há coisas boas no que o anime faz mal assim como há coisas ruins no que o anime faz bem. Essa escolha da obra de se comunicar com a audiência por meio de monólogos de personagens, por exemplo, embora caracterizado por mim como um ponto negativo, não é necessariamente um erro. Do mesmo modo que diversos "atalhos narrativos" que o anime dispõe, é um recurso preguiçoso e, às vezes, mal-utilizado, mas que nem sempre é empregado erroneamente, ocasionando a contraditória situação em que nos encontramos quanto aos pontos positivos e negativos da obra, pois, em ambos, há observações a serem feitas.


Voltando à diferenciação entre uma temporada e outra, os pontos positivos da primeira foi a sua (parcial) ambiguidade, que permitiu explorar bastante os personagens, adicionando certa profundidade à narrativa; a comédia sútil e, inclusive, boba, porém não despropositada ou forçadamente óbvia e caricaturesca; os próprios personagens, que, em geral, são carismáticos e (apesar dos monólogos pouco críveis a fim de dinamizar substancialmente o enredo) acreditáveis, emulando satisfatoriamente elementos reais; a (parcial) sutileza ao tratar de certas particularidades; e o cuidado em não enviesar características atribuindo a elas juízo de valor, de tal forma que a audiência possa de fato se investir na trama julgando a moral da história sozinhos, entre outros pontos sobressalentes e derivados das propriedades já citadas. Dito isso tudo, o que realmente discerne a segunda temporada da primeira é que ela não evolui ou desenvolve seus personagens, mundo e relacionamentos (isto é, com exceção da Hina, que é a única com algum aprofundamento); ela também deixa de lado a ambiguidade, tratando os acontecimento de maneira "preto ou branco", o que ocasionou, por consequência, situações enviesadas, que não mais envolvem o público na "resolução" (aliás, a primeira temporada sequer implicava que era necessário uma solução, pois retratava aspectos como a depressão do protagonista naturalmente, sem forçar dramaticidade nas circunstâncias); perdeu a parte do humor, preferindo se concentrar nas ocorrências dramáticas da trama (que, como era focalizada, não envolveu todos os intérpretes, deixando alguns à parte); por conta do foco no drama, ou melhor, melodrama do enredo, os personagens também perderam as suas essências leves e carismáticas. Apesar desses duros apontamentos, a segunda temporada teve alguns momentos isolados que foram bons, além de conter também outros aspectos ruins, só que relacionados ao enredo de forma mais específica, e não tão estrutural quanto aos que preferi citar. De qualquer forma, ela foi muitíssimo fraca em comparação à primeira, cometendo os mesmos erros em uma escala ainda maior e pervertendo praticamente tudo que havia de bom e que se sobressaía em relação a essas tais falhas.


Conclusão.


No minuto em que paramos para analisar nuances, animes viram merda. Por isso (e por outros motivos) acredito que não existe obra-prima, e que a mídia é em geral bem medíocre, enquanto mesmo as melhores obras apresentam falhas extenuantes.





Autor: dorsk;

Contato: Twitter.