Ignorância é força; igualdade é superestimada
"1984" é uma ficção política escrita por George Orwell entre 1948 e 1949, sendo publicada em 1949, conquanto ainda continue bastante atual. Trata-se de uma narrativa acerca de um futuro alternativo em que o mundo foi tomado e divido por três grandes potências: Oceânia, Lestásia e Eurásia, que juntas ocupam todo o planeta. Passa-se na Oceânia, e acompanha a jornada do "camarada" Winston Smith conforme ele começa a questionar a legitimidade do Partido, a organização que controla a região. A logística do Partido, tema amplamente retratado no livro, não é exatamente complexa, mas é consideravelmente extensa, consistindo, resumidamente, de uma estrutura piramidal com membros do Partido Interno no topo (esses que são minoria e têm como privilégios em relação às duas outras classes a possibilidade de comer boa comida, viver em uma casa limpa e espaçosa, e manter o sistema de controle do pensamento funcionando, nivelando-o por cima e devido a isso podendo se reservar de alguns aspectos impostos, etc.), membros do Partido Externo no meio (esses que na verdade são o foco do controle de pensamento, pois desempenham funções "fundamentais" na manutenção da estrutura por trás dele, porém não têm a liberdade de se desenvolverem intelectualmente, sendo constantemente vigiados por um aparelho denominado “teletela”, enquanto, entre suas responsabilidades, é esperado nada menos que amor ao Partido e ao Grande Irmão, figura que simboliza a glória do Partido; além disso, recebem rações de comida, que, embora precárias, diferenciam-nos da camada abaixo), e embaixo os proles (compõem mais de 80% da população, todavia, com o decorrer do tempo, tornaram-se tão ignorantes que o Partido simplesmente não viu necessidade em tentar controlá-los, portanto são livres para pensar por si só e expressar emoções à vontade, mas lidam com uma condição de vida tão débil que não apresentam ameaça alguma ao Partido, pois não conseguem e não querem se revoltar à organização).
Para manter tudo em seus eixos, o Partido desempenha um sistema autossuficiente concernente à guerra. Basicamente, as três potências estão guerreando desde sempre, entretanto nenhuma delas faz alguma investida determinante, visto que, por se basearem em doutrinas semelhantes (adjacentes ao socialismo), necessitam manter a população em ininterrupto desalento. Sobrecarregam-nos com trabalho sob a perspectiva de que "estão em perigo constante devido ao conflito", e, no entanto, utilizam-se dessa desculpa para regular vários aspectos dentro do regime. Nunca há recursos sobrando, conseguinte a massa não se desenvolve, preocupando-se apenas em sobreviver às condições de sempre estar em um meio termo entre morrer de fome e a má nutrição, o que é ótimo para o Partido, que almeja seguidores ignorantes, ou, se não forem seguidores (que é praticamente o caso dos proles), completos ignorantes. A guerra, contudo, não é um fingimento. As três nações de fato guerreiam, mas não se beneficiariam tanto ganhando, já que suas respectivas sistemáticas dependem do subdesenvolvimento popular, do ódio cego e irracional ao inimigo e do decorrente sentimento de nacionalismo incondicional.
O Partido só chegou tão longe com tal metodologia porque se difere de outras ideologias totalitárias na maneira como enxerga o poder. Almeja poderio na sua mais pura forma; portanto, na manutenção dele, não faz distinção. Negros, judeus, indígenas, islâmicos ou qualquer outra etnia pode ocupar cargos altos, uma vez que o avaliado são as respeitantes habilidades do indivíduo e o amor ao Partido. Não há um sentimento de injustiça para unir os oprimidos, pois, a partir dessa perspectiva, são todos iguais (e, em suas devidas regiões, governados por iguais). Embasando-se nesse simples preceito, o Partido é livre para tomar atitudes realmente resolutivas na continuidade e aperfeiçoamento de sua existência e cada vez mais arbitrária autoridade. Citando rápida e superficialmente, outras estratégias do Partido a fim de controlar as massas consiste em reduzir o vocabulário ao elaborar termos que ao mesmo tempo apresentam os dois significados contrários de uma palavra (tal linguagem, chamada de “novilíngua” na minha versão do livro, está incessantemente erradicando o peso e significado dos vocábulos, ao passo que acostuma as pessoas a conviverem com pensamentos contraditórios sem sequer perceberem); manter a população tensa (já mencionei) e, no entanto, direcionar parte dessa inquietude aos opositores do Partido durante um evento sazonal chamado de "dois minutos de ódio", em que, por dois minutos, residentes são convocados para assistir a uma mensagem de um famoso antagonista do Partido à medida que expõe as lástimas condições na qual a população vive, mas que, todavia, decorre com todos gritando insultos à figura enquanto ela tenta "racionalizar" (de maneira um tanto revoltada) a situação; desconstruir o senso comum de "laços familiares" ao educar as crianças desde muito cedo a amar somente o Partido, identificando e denunciando traidores até mesmo na família; expurgar os desejos carnais o máximo possível, pregando uma moralidade que torna esse tipo de ato em algo indecoroso, embora um fardo necessário à reprodução da espécie; e, por último (mas na verdade ignorando vários outros aspectos e detalhes), controlando a realidade ao apagar os rastros do passado que não interessam ao Partido, além de mais ou menos erradicar a arte (principalmente literária) como um todo (sim, isso foi um resumo safado e preguiçoso de “duplipensar”).
Diz-se uma literatura de extrapolação quando meramente é apresentado conceitos já existentes, só que em uma releitura de maior grau. Inimigo negativamente hiperidealizado a fim de unir a população ao seu governante, por exemplo, é um grande clichê da vida real, podendo facilmente ser exemplificado através do atual presidente do Brasil, Jair M. Bolsonaro, em sua cruzada anticorrupção (maldito Queiroz, não?), e vice-versa com Haddad, adversário do candidato no segundo turno das eleições, e sua campanha baseada no alarmismo antifascismo personificada pelo próprio Jair. Nesse sentido, George Orwell fez uma aposta inteligente ao arquitetar uma história distópica com alicerces em temas particulares à humanidade, embora tal "aposta" não fosse necessariamente original, tendo em vista que "Admirável Mundo Novo", escrito por Aldous Huxley, havia sido publicado alguns anos antes. De qualquer forma, as críticas ao totalitarismo dizem respeito à igualdade. Utilizando-se da "voz" do narrador, Orwell argumenta que, após a revolução industrial, o clássico modelo piramidal (e desigual) da sociedade se tornou desnecessário, inclusive fazendo uso dessa premissa para "justificar" os acontecimentos dentro do universo ficcional que criara (a partir do momento em que "trabalhos pesados" não fossem mais uma inevitabilidade dado o crescente avanço tecnológico, o conceito de estratificação social poderia ser concebido como despropositado, contudo, a classe média que havia recentemente se elevado ao poder almejava perpetuar a sua dominância e influência, e com isso o sistema repressivo se formou). No caso, apesar de ter representado o poder opressivo e totalitário através do socialismo, alegou posteriormente que a razão por trás de tal atitude era simplesmente contextualizar que, quando se depende de uma fonte arbitrária de poder administrativo, fica-se vulnerável à falha ou à cobiça humana. Como a igualdade só poderia ser alcançada artificialmente, no entanto, acreditava em uma espécie de socialismo democrático, com o povo, mediante a sindicatos, regulando as ações do país.
A principal formulação da obra consiste no controle por meio do medo e da repressão, e nas pessoas não conseguindo distinguir se isso é bom ou ruim (uma vez que não havia padrão de comparação devido ao “duplipensar”), acarretando, ao menos para elas, em um impasse entre utopia e distopia. Conquanto interessante, tal conceito também nos põe, propositalmente, a pensar: o que caracteriza um ambiente bom e, principalmente, justo para se viver? O narrador pondera que a resposta é a igualdade, porém particularmente discordo. Considerando que os seres humanos são diferentes entre si, como uma teoria política pressupõe igualdade? Igualdade perante o quê? Trata-se de uma contradição dentro da própria premissa, o que só posso conceber como ilógico, a não ser que, a fim de buscar essa igualdade idealizada, use-se força. Todavia, se necessita de uma manutenção externa para "funcionar", o que garante que a estrutura "eles mandando em nós" não voltará disfarçada sob outra forma? Ao invés de "porcos capitalistas" ou "malditos ditadores", "inescrupulosos sindicalistas". Assim como o livro menciona a ascensão da classe média ao poder mediante argumentos traiçoeiros e falsamente igualitários, o mesmo poderia se encaixar aqui, o que denota um erro argumentativo bastante primordial. Ignorando as inconveniências econômicas que seriam ocasionadas pelo método de produção socialista, o qual é ineficiente, para analisarmos pela perspectiva somente ideológica, a "resposta" anteriormente mencionada muda de igualdade para liberdade, mais especificamente como resultado direto da propriedade.
Hans-Hermann Hoppe disserta: "Apenas porque existe escassez existe um problema de formular leis morais; apenas se os bens são superabundantes (bens 'livres'), nenhum conflito quanto ao uso dos bens é possível e nenhuma coordenação de ação é necessária. Consequentemente, disso segue que qualquer ética, corretamente concebida, deve ser formulada como uma teoria da propriedade, ou seja, uma teoria da atribuição de direitos de controle exclusivo sobre meios escassos. Só assim se torna possível evitar conflitos até então inevitáveis e sem solução." Contudo, no socialismo democrático defendido por Orwell a ética não se sustenta porque viola a norma básica de não-agressão (essa que tem sua veracidade implícita no mero ato de argumentar, segundo denotou Hoppe em "A Ética e a Economia da Propriedade Privada"), caracterizando-se como uma teoria política hierarquizada. Conseguinte, assim como os sistemas criticados pelo autor, funciona de forma unilateral por meio do uso da força (obviamente, todas essas informações são um resumo absurdo e fadado a ser incompleto dos argumentos propostos por Hoppe, portanto, para uma maior profundidade, é recomendável o livro "Uma Teoria do Socialismo e do Capitalismo", em específico da página 49 até a 70, que é quando a tese social-democrata é analisada com escrutínio). Em suma, partindo da premissa de que a ética, para dispor de validade, implica como questão primária e essencial o princípio lógico da não-agressão (ou seja, o caso moral e prático a favor da abolição da coerção em todas as relações interpessoais e assuntos humanos na maior extensão que for possível, de forma a impossibilitar uma estrutura arbitrária que, quando em maior proporção, pode escalar ao totalitarismo), apenas o libertarianismo condiz.
Ao contrário do que muitos dizem, não acredito que “1984” seja "genial" ou "essencial" de se ler. É um bom livro, com altos e baixos e contendo seu primor no universo relativamente bem idealizado e explorado. Faz críticas a várias coisas, mas, em geral, soa basicamente como o manuscrito de Goldstein conforme os dizeres de Winston: a sistematização de um conhecimento que já possuímos. Tem um ritmo pobremente definido, intrigando o leitor para logo depois se tornar maçante, e então apresentando um novo elemento a fim de novamente intrigar o leitor, porém outra vez utilizando-se excessivamente desse recém-introduzido aspecto para evoluir na narrativa, e portanto voltando a ser maçante. Tal processo ocorre três vezes, e, embora não estrague tanto a experiência, macula-a. Enfim, há quem diga que sou exigente demais; assim sendo, vale a pena ler a obra para tirar suas próprias conclusões, afinal, apesar de minhas ressalvas, ainda a considero uma boa leitura.
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