A desilusão e a jornada do herói - Falando de Blade Runner 2049
Em meio ao universo do entretenimento ficcional, há um conceito chamado de arquétipo narrativo, sendo que ele consiste, basicamente, em dar determinado direcionamento ao rumo que a trama seguirá, baseando-se, para tal, em algumas normas gerais (há também os arquétipos que moldam personagens, conflitos ou apenas algum elemento específico dentro do enredo). Praticamente todas as obras (de qualquer mídia) utilizam arquétipos narrativos, e se você se incomoda com estruturas iguais/parecidas (o famoso "clichê"), a culpa certamente é desse conceito. Normalmente, trata-se de alguma derivação do “monomito” (ou, como é popularmente chamado, “a jornada do herói”), pois é fácil elaborar uma história em cima desse espécime narrativo, além de que ele pode (com pequenas mudanças relativas ao contexto do enredo em questão) ser aplicado em quase tudo. E não é diferente com “Blade Runner 2049”... ou é?
Lidamos com um protagonista replicante engenhado para caçar modelos antigos. Um “blade runner” completamente apático, aparentemente sem quaisquer pretensões. Há uma trama palpável, mas ela não importa, pois o filme é, acima de tudo, um estudo de personagem, ou pelo menos tem seu primor nos personagens e nos conceitos ao redor deles. K é tido como inferior por ser um "skinjob" (replicante), e demonstra indiferença quanto a tudo isso, assim como também, em um primeiro momento, mostra-se indiferente à possibilidade de ter "nascido" de forma biológica, diz ser "impossível, e, mesmo que seja verdade, trata-se de um problema e não de algo bom". A evolução do protagonista advém de muitas coisas, mas principalmente da interação com outros personagens. A princípio, Joi planta a semente da ideia de que ele é especial (comentarei isso depois), e o mesmo fez tenente Joshi, dizendo que, às vezes, esquece o que ele é. Paralelamente na trama, surge a informação de que algum replicante teve um filho através do processo biológico (engravidar, etc.), algo completamente inconcebível, afinal a maior comparação feita pelos humanos é de que replicantes seriam o mesmo que androides, tanto é que os exploram ao máximo e sem qualquer escrúpulo, no entanto, máquinas tais como androides não são capazes de se reproduzir, são? Inclusive, há toda uma revolução por parte dos replicantes sendo planejada ao redor justamente deste argumento: são seres biológicos, vivem tanto quanto um humano (pois agora no comando da empresa de Wallace, os replicantes não têm mais limite de vida de quatro anos, o famoso “lifespan” característico da Tyrell Corporation), são idênticos aos humanos em praticamente todos os aspectos e agora se reproduzem por conta própria, deveria importar como surgiram? Em contrapartida, Wallace idealiza a situação de maneira totalmente diferente. Ele não considera o que a sociedade pode pensar, não se importa, pois, utilizando-se dessa nova característica, sua companhia poderia "produzir" replicantes massivamente, acelerando o processo de colonização espacial e concretizando seu domínio, amenizando, também, a sede que sente por grandiosidade (em suas próprias palavras, já conquistou nove mundos, mas até uma criança consegue contar até nove).
Conforme, através de investigação, os eventos ligados ao passado do replicante "que nasceu" começam estranhamente a coincidir com as memórias de K, que, assim como todo replicante, pensava que as suas reminiscências eram implantadas, seu mundo colapsa por meio de estágios: nega a realidade ante aos seus olhos, pois se recusa a acreditar, depois passa a ter uma atitude cética, almejando ir ao fundo do assunto para descobrir se as proposições tidas como óbvias pelas circunstâncias estão corretas, e, após a "confirmação", finalmente colapsa. Na sua própria concepção, a diferença entre replicante e ser humano seria a "alma", um aspecto impossível de ser replicado, e por isso no universo “Blade Runner” replicantes não têm um senso de empatia apurado, enquanto que tal diferença estaria relacionada ao fato de que são engenhados sinteticamente, por mais que sejam também seres biológicos. Viveu servindo aos outros, sendo complacente à tarefa que lhe foi designada e paciente ao que lhe era feito diariamente, tudo apenas porque achava que não tinha alma. Isso, ao menos em minha percepção, foi o principal causador da revolta inesperada, desesperada e ruidosa proveniente de um personagem que sempre se portou com frieza e indiferença ao lidar com situações extremas nos mais amplos sentidos da palavra. Como determina a pergunta clássica do “Voight-Kampff”, questionou a natureza de sua realidade para descobrir pouco depois que, na verdade, não era ele "o escolhido", não era ele quem tinha nascido da maneira humana, colocando, de tal forma, em dúvida todos os seus antigos preceitos de quando ainda achava que era apenas um replicante engenhado para caçar modelos antigos sobre o que seria alma e sobre qual seria a real diferença entre humano e replicante. O filme questiona o conceito de alma, implicando que ela é um construto do ser humano para que ele se enxergue de forma diferente dos outros seres, sendo, portanto, algo que depende apenas de autorreflexão, de forma que replicantes, se vissem sua espécie como tal, poderiam chegar à singularidade da individualidade, da alma. Em K, tal construto começa quando ele não se permite dizer a verdade à tenente sobre a criança nascida de um replicante, ao qual pensa ser ele. A figura do herói aos moldes do “monomito” se desenvolve inteiramente no personagem durante esse processo, porém descobrimos, assim como ele próprio descobriu, que não passava de inoportunas coincidências, enquanto que ele não passava de um figurante no cenário da revolução replicante (é explicado que o replicante nascido do processo humano seria o argumento central, e, conseguinte, o protagonista a fim de fazer os seres humanos questionarem as suas ações quanto às suas, até então, criações).
Retomando o primeiro parágrafo do tópico anterior, embora o filme siga, em partes, o arquétipo citado, há alguns diferenciais determinantes. Enquanto a jornada lida com três fases* (chamada: a etapa que mostra o herói aspirando sua jornada; iniciação: parte do enredo formada por diversas aventuras vividas pelo herói ao longo do caminho; retorno: o momento em que o herói volta para casa com experiência, conhecimento e os poderes que adquiriu durante a aventura), em “Blade Runner 2049” vemos, como já (parcialmente) elucidado, uma completa desconstrução do terceiro estágio. K é plenamente desiludido quanto a sua importância, do mesmo modo que também é desiludido em seu relacionamento amoroso. Odiava os diálogos de Joi aos quais ele podia perceber que eram programados (tanto que, na cena da varanda/sacada/telhado/onde quer que isso tenha acontecido, advertiu-a sobre não precisar afirmar que estava feliz ao lado dele, já que sabia que ela tinha tal fala programada no "script"). Ainda assim, gostava de interagir com a inteligência artificial, provavelmente devido a algum fetiche (inicialmente, pensei que tinha algo a ver com o fato da Joi, diferentemente dos outros personagens até então, não o julgar à parte, não tornando relevante ou vendo importância em ele ser um replicante, no entanto outros, posteriormente, também o aceitaram, porém sua preferência não muda, desbancando essa minha miniteoria), mas a questão é que ele genuinamente se envolve com ela, por vezes acredita nos "sentimentos" da moça (principalmente após a proatividade dela em demonstrar sua "afeição" na forma de ações, ocasionando a surpreendente e interessantíssima cena de sexo a três, mas que, na teoria, era só entre os dois) e sofre quando Luv a destrói... todavia, ao se deparar com a holografia gigante de Joi (não a versão que interagiu com ele e, portanto, adaptou-se a ser dele, mas o "produto" para exposição com a face dela) chamando-o de Joe, nome que a "sua Joi" deu a ele, decepciona-se novamente, pois é forçado contra uma dura realidade: nada do seu relacionamento foi espontâneo, nada foi real, e ela não passava de uma IA improvisando com os dados pré-programados nela. Talvez tenha decidido ajudar Deckard apenas por ter se frustrado com a sua vida tantas vezes e de tantas formas de maneira que não restasse mais nada que ele almejasse ou se importasse, afinal (como o próprio Deckard fez questão de apontar) não devia nada a ele. Tudo isso ocasionou uma cena belíssima (embora não se compare com a passagem ao qual faz referência) quando vista por esse ponto de vista, finalizando a jornada do nosso herói com o protagonista morrendo sem quaisquer perspectivas, mas de um jeito diferente do "sem perspectivas" ao qual começou na trama. Resumindo, foi foda.
*: https://paulomaccedo.com/jornada-do-heroi-storytelling/
“Blade Runner 2049”, tal qual o livro de PKD e o filme clássico de 1982, apresenta alguns problemas (uns pouco significativos e outros mais difíceis de "engolir"). Por exemplo, como Luv/Wallace descobriram que a Rachael teve uma filha? Pelo cabelo que K levou até eles quando foi investigar o caso? Tal aspecto é primordial na trama, e, inclusive, reassisti ao filme para ter certeza de que não estava deixando alguma informação passar, mas realmente não explicam como os dois ficam sabendo do nascimento, o que definitivamente pode ser considerado uma falha mais crucial, embora, assim como outras falhas desse tipo presentes em “Blade Runner 2049” (tal como o fato de que não salientam de que forma K descobriu a localização de Deckard quando ele estava sendo transportado para fora da Terra pela Luv no final do longa), poderíamos atribuir o aspecto suspensão de descrença "pode facilmente ser explicado, por mais que não tenha sido". Também há alguns erros "menores", como quando a tenente Joshi remove a arma e o distintivo de K, mas o deixa ficar com um carro com armas embutidas, e na facilidade e falta de consequência nos atos de Luv dentro de uma delegacia (matou duas pessoas e roubou evidências em uma simplicidade questionável).
Houve uma época em que idolatrava esse filme. Não é mais o caso, mas ainda gosto (em partes) dessa dissertação.
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