Análise de Planetes
Planetes, capítulo 5 ao 16. Contém spoilers.
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Planetes é um mangá de ficção científica escrito por Makoto Yukimura sobre exploração espacial. Apesar do gênero central, trabalha temas sentimentalistas através do desenvolvimento dos personagens, que, em ultima análise, apresentam dilemas humanos, diferenciando-se dos padrões comportamentais que normalmente identificamos em outras obras de ficção. O surrealismo associado ao gênero é dessemelhante: o científico é abordado como sendo algo próximo, algo real. Aspectos que tornam Planetes, além de uma narrativa inspiradora, um reflexo sobre a vida, desde dissecações sociais a explorações temáticas concernentes à Psicologia e Filosofia; objetiva e interpretativamente. Em meio a essas complexas propostas e conceitos, o mangá é construído, talhando mensagens de fácil identificação, expondo reflexões além da narrativa em si, modificando, através delas, ideologias; a obra explora a existência (e o possível sentido dela) conscientemente. Partindo disso, temos, de maneira focalizada, Hachirota Hoshino.
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Inicialmente, Hachirota é apresentado como um personagem dúbio de ambições simples, possuindo uma abordagem psicológica bem sensível em seu desenvolvimento. Tendo como objetivo a compra de uma nave própria para exploração, não hesita em resmungar sobre como é suficientemente apto e conhecedor do espaço para fomentar, em seu meio, uma ideia de confiança partindo de seus colegas de trabalho. A imagem que o personagem passa, ou ao menos tenta, desaba quando é exposto a uma grande quantidade de radiação solar, desenvolvendo um sério distúrbio relacionado ao espaço tão "conhecido" por ele. A manifestação fisiológica torna-se inevitável, garantindo uma série de alucinações que "materializam", em um plano mental, a figura dele mesmo. Após um intenso monólogo interno, Hachirota se transforma em alguém compulsivo e imprevisível, a fim de negar o anteriormente dito a ele de maneira aflita, indo contra até mesmo às implicações da profissão. Tendo sua carreira posta à prova graças ao distúrbio, o personagem, com a ajuda de seu colega, pretende cumprir uma nova e mais alcançável ambição — tornar-se propício a ser selecionado para o Projeto Júpiter, que consiste na coleta de recursos naturais essenciais para o futuro da exploração espacial — no intuito de evitar suas alucinações constantes. Esse evitamento, que pode ser facilmente interpretado como fuga, é a principal base para o declínio moral do personagem sendo extremamente perceptível com um certo período de leitura.
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Como forma de justificar a imprevisibilidade e compulsividade de alguém incompleto internamente, Irvin Yalom, escritor americano formado em psiquiatria, destaca em Psiquiatria Existencial que o comportamento perturbado referente aos dilemas existenciais de um indivíduo está associado, no confronto entre fracasso e angústia, com elementos de sua existência: a morte garante comportamentos compulsivos/sentimento de invulnerabilidade/dependência; a solidão, dependência emocional/hipersexualização; e o sentido da vida, conformismo exacerbado/dependências (Yalom, 1980). Estando debilitado mentalmente, o personagem apresenta todos esses "sintomas" concernentes à sua existência e, para indiretamente evitá-los, impõe uma nova motivação que resulta na dissolução de seus conflitos psicológicos: é movido unicamente pelo desejo de conquista.
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Hachirota, até então, transparece uma genuína seriedade quando se trata de seu treinamento e se desvincula do emocional aparentemente desnecessário, resultando em atitudes frias esboçadas na maioria dos acontecimentos a sua volta. Graças a isso, o desejo de ingressar no tão almejado Projeto Júpiter torna-se mais próximo e o personagem é capaz de fazer qualquer coisa em prol do seu objetivo. Evitando obstáculos dispensáveis, a repressão dos seus sentimentos negativos que, apesar de implícitos, eram os mais presentes, é a forma deturpada que encontra de alcançar uma postura confiante e decidida: não deseja ser dependente ou próximo emocionalmente de ninguém. Completamente cego por suas ambições, não apresenta nenhuma empatia sobre as pessoas, coloca a vida alheia em risco sem hesitar; considera-se mais importante. Entretanto, a chegada de Ai Tanabe — tripulante iniciante — representa um grande conflito de ideologias individuais, visto que os dois apresentam ideias completamente diferentes sobre a profissão e humanidade. Enquanto ele dispõe da ideia de inutilização das emoções, Tanabe defende um discurso sentimentalista sobre o amor e conexão, o que, em dado momento, através de um simples ato direto de compaixão, afeta o protagonista explicitamente — e inesperadamente.
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"[...] O homem está, portanto, centrado somente no seu eu e o que está sendo glorificado é o pensamento único, isto é, eu me penso, eu me faço e eu sei. Essa é uma maneira de não ser desafiado nem contestado. O homem pensa que, sendo individualista, terá o direito e o dever da livre escolha, mas muitas vezes isso escapa de suas mãos (Bauman, 1999)."
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Em uma missão na órbita lunar, a nave que abrigava Hachirota e seu co-piloto Leonov é comprometida e rapidamente se choca contra a planície. Sendo o oxigênio dos trajes insuficiente e tendo o seu colega gravemente debilitado devido ao impacto, o personagem encontra poucas opões de sobrevivência. Ele precisava chegar até a base mais próxima urgentemente, e em meio ao desespero da situação, Hachirota passa a tratar com prioridade a vida alheia e encontra disposição para carregar nas costas, por 10 quilômetros, o colega à beira da morte. A estranha e repentina capacidade adquirida de se importar, influenciada pelos pensamentos e atitudes relacionadas à Tanabe, desvirtuam por completo a sua ideologia individualista, sua cultura narcisista e o desejo de reprimir sentimentos negativos e (os poucos, ou quase inexistentes) positivos. A solidão tão almejada não era mais necessária e, considerando isso, não encontrava mais sentido na devoção ao emprego ou na fidelidade quanto à concretização de seu sonho, como se tudo que o movia tivesse se dissipado junto do seu "eu" interior (o qual tentava desesperadamente evitar). Em outras palavras, assim como qualquer outro ser humano perante um momentâneo silêncio, Hachirota estava vazio.
“Eu imagino por que... estou tão calmo. Como se toda a raiva que eu estive guardando estivesse se dissolvido. Por que eu estava tão nervoso? Por que eu estava com tanta pressa? Não faço ideia...”
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O estado emocional subversivo resultante da carência de sentido em sua perspectiva individualista e a inutilização tardia do agir autocentrado limitante, trouxeram ao personagem a inércia e a apatia. Motivações, sonhos, objetivos, ou o próprio meio vulgarizado para a obtenção destas ambições deixaram de existir. Exausto, encontrava-se perdido, silenciado por pensamentos, à margem de alucinações. Um gato, que se apresenta como a materialização da contradição existencial ou uma entidade, referenciando o Demônio do Meio-Dia de Nietzsche, expõe a possibilidade da realidade funcionar como um círculo, modelando um cotidiano cíclico interminável. Diante da atual questão, transmitida através de sua disposição reflexiva, o personagem se confunde, pois além de toda a abstração, respostas não lhe são denotadas. Só é necessário rodar, rodar e rodar... eternamente?
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"Esta vida, assim como tu a vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes; e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indizivelmente pequeno e de grande em tua vida há de retornar, e tudo na mesma ordem e sequência — e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez — e tu com ela, poeirinha da poeira! (Nietzsche)".
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Hachirota, contradizendo sua precedente ideologia de negação do conectivo emocional, decide compartilhar: o sentido para sua vida, dado subjetivamente, é estar junto daqueles que o amam. Uma resposta extremamente simples para um questionamento existencial primordial, porém a resposta dele. Viver uma vida cíclica transformou-se de um pensamento frustrante e insatisfatório para algo afável; ele extinguiu o seu vazio preenchendo-o com afeto recíproco. Encontrou na felicidade conseguinte o prazer de existir e, neste prazer, um sentido; estava finalmente completo em si.
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O ser humano generalizadamente está sempre em movimento quanto à busca de significações para a vida, sendo esta uma motivação fundamental humana. Essa vontade de sentido (força intrínseca natural do ser) gera uma inquietude relacionada à existência aparentemente ilegítima do homem, tornando a angústia resultante um fator impulsionador de enfrentamento singular. Segundo Frankl (1993), amor, fé e confiança são sentimentos que demonstram a resiliência de um ser quanto a essa busca, pois, agora, acredita em uma incondicionalidade no sentido para sua vida, apesar das circunstâncias. O afeto recíproco, responsável pela grande mudança do personagem, pode ser nomeado de supra-sentido, utilizado como objeto para o preenchimento definitivo de uma ausência interior abstrusa. O vazio reflexivo consciente que o personagem enfrentou tornou-se o único meio para uma possível existência sem dúvidas; uma existência plena — e isso pode ser facilmente trazido para fora da esfera ficcional.
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Em um âmbito obviamente subjetivo (considerando que você possa ser um religioso que ressignifica a sua vida baseando-se em preceitos hieráticos, o que também é um supra-sentido fundamentado), a vida, como conceito, realmente não possui sentido algum. Sem ciência, nascemos, existimos e simplesmente morremos. Acreditar nela como insignificante, um mero aglomerado de acontecimentos, experiências, relacionamentos afetivos e conhecimentos é uma concepção bem difundida por pensadores como Albert Camus e utilizada por muitos como filosofia. O meio da divisão existencial (nascer, viver, morrer), deixa de existir, torna-se algo tolerável e nada minimamente aprazível; já não há vontade ou nescessidade de sentido, as coisas perdem o brilho e a desvalorização de literalmente tudo é inevitável. Vivemos quase que obrigatoriamente e nem mesmo a morte é uma solução, pois também é e faz parte da vida, e, se a própria não possui sentido, a morte como finalização do processo também não. E é em meio a essa complexa crença que vivemos em plenitude o tédio e, acima de tudo, a infelicidade. Em outras palavras, vazio frente à existência.
Para Sartre, o homem é um ser não estático, que está em constante ascenção. Ele primeiramente existe, é nada e, durante o processo de sua existência, constrói uma essência que se molda a partir do nada que a princípio é; a existência procede a essência. Sendo um ser indefinido e indeterminado, valoriza a experiência como base para uma busca insaciável por sentido da vida. Mediante a isso, relutantemente, é incompleto, sua indefinição e incompletude suscitam no ser um desespero associado ao enfrentamento da incerteza, há o desejo de ser nada. A busca por sentido é efetiva no homem, porque é um ser para si, questionador, que se impressiona com a própria subjetividade estando insatisfeito, pois quer ultrapassar seus limites; constrói a si mesmo; é livre (Sartre, 1997). Para Frankl, em complemento, o homem, diferentemente das outras coisas, é o seu próprio fator determinante. Tudo o que está dentro dos limites de suas capacidades e de seu ambiente deve fazê-lo por si.
“Enquanto estava lá fora, eu comecei a pensar. Sobre o espaço, sobre quem eu era. Não sei por que, mas fui completamente absorvido pelos meus pensamentos.”
Perante o seu estado, Hachirota assume uma postura extremamente adequada para lidar com o sentimento: encontrava-se reflexivo, absorvido por pensamentos. Em uma escala humana, pouco importava a insignificância do ser perante o Universo ou tudo o que se construía à volta do raciocínio absurdista, a temática intrínsicamente humana nescessitava de meditações proporcionais, não de buscas incansáveis por consumo para um preenchimento interno momentâneo, por conceitos preestabelecidos sobre o ideal de felicidade ou por conquistas; assim como mantinha-se agarrado exclusivamente ao desejo individual, enquanto glamorizava a própria solidão. O sentido para a vida do personagem não existia prontamente, mas algo que passou a ser concreto quando encontrado. É um conceito puramente único e pessoal que procede a reflexão que procede uma decisão: de encarar o nada, determinar um sentido sendo um ser para si e, posteriormente, um ser para com os outros; construir a si mesmo; "viver para viver".
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Antes de qualquer coisa, acho válido esclarecer que decidi tratar dos temas partindo de algo, neste caso, de interpretações acerca de assuntos abordados em um arco específico de mangá; estou certo de que se trabalhasse as temáticas isoladamente eu fugiria do aspecto superficial. O intuito não é ser instrutivo, apenas uma postagem qualquer acerca de reflexões que tirei ao decorrer da minha quinquagésima leitura de um dos meus mangás favoritos. Aliás, vale ressaltar: mesmo que tenha ignorado o aviso de spoilers, sugiro que leia a obra por conta e interprete a sua maneira. Garanto que será uma ótima experiência.
· Referência: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-82712010000300008]
· O vazio existencial dentro da psicanálise: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-58352013000200013
· Supra-sentido: http://www.angelfire.com/nf/fenomenologia/textos/frankltext2.html
— Mangá finalizado, 26 capítulos.
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