O intuito não é ser didático, e é menos ainda uma recomendação de anime. Trata-se de uma interpretação? Os trechos entre aspas são citações retiradas do livro "O mito de Sísifo", de Albert Camus.

“Watashi”.

"Serei para sempre um estranho diante de mim mesmo."


"Sente dentro de si o desejo de felicidade e de razão. O absurdo nasce desse confronto entre o apelo humano e o silêncio despropositado do mundo."


O protagonista não tem nome. Bastante apropriado, considerando que, dessa forma, é possível enxergar nele todo e qualquer jovem. Quero dizer, é especialmente fácil perder-se em idealizações a partir do período da adolescência: gafes parecem mais significativas do que são, tal qual a dificuldade de conectar-se soa como um problema particular ao invés de algo que todos têm que lidar ocasionalmente. Imaginar uma forma melhor de como as coisas poderiam ter ocorrido é apenas natural.


Dito isso, viver tendo por base tais pensamentos não é saudável. É preciso construir uma identidade factual, alheia ao que poderia ter sido, principalmente porque "não há fronteira entre o que um homem quer e o que ele é". Se há um aspecto da própria personalidade que não o agrada, deve-se removê-lo e não se resignar a ele. Você não é um prisioneiro do que acredita no momento: o conteúdo de uma convicção atual não o define, ainda mais sob a perspectiva de que existem aspectos inefáveis intrínsecos à consciência do indivíduo. Assim, forçar-se a residir no plano imaterial e perfeito da própria mente como maneira de escapismo é bastante despropositado. Um desperdício. Mudar é somente uma questão de escolha.


Escolhas.


"À proporção que imaginava um objetivo para sua vida, ele se conformava com as exigências de um objetivo a atingir e se tornava escravo de sua liberdade. [...] à medida, enfim, que organizo a vida e que provo, por isso, que admito tenha ela um sentido, vou me criando barreiras dentro das quais fecho a minha vida."


"[...] as condições da vida moderna impõem à maioria dos homens a mesma quantidade de experiências e, conseqüentemente, a mesma experiência profunda. [...] o erro está em pensar que essa quantidade de experiências depende das circunstâncias da nossa vida, quando ela só depende de nós. Aqui, é preciso ser simplista. A dois homens que vivem o mesmo número de anos o mundo fornece sempre a mesma soma de experiências. Cabe a nós estarmos conscientes delas. Sentir sua vida, sua revolta, sua liberdade, e o máximo possível, é viver."


"[...] os tristes têm duas razões para sê-lo: eles ignoram ou esperam."


"Essas dilacerações são terríveis. Mas, para um coração orgulhoso, não pode haver meio termo. [...] Esse mundo tem um sentido mais alto, que ultrapassa as suas agitações, ou não há nada verdadeiro a não ser essas agitações. [...] Não quero fazer constar na minha conta nem saudade nem amargura: só quero é ver com clareza. É como lhe digo: amanhã você será mobilizado. Para você e para mim, isso é uma libertação. O indivíduo não pode nada e, no entanto, pode tudo."


"Sim, o homem é seu próprio fim. E é seu único fim. Se quer ser alguma coisa, é nesta vida."


É atormentado pelas possibilidades. Vive de delírios porque considera sua realidade atual uma versão inferior. Negligencia a sua existência, deixando de senti-la ao máximo. Enquanto isso, espera passivamente por algo mais, como se merecesse, como se devessem isso a ele. A culpa de sua infelicidade é das circunstâncias, é do Ozu. Não quer preencher seu vazio com escapismos baratos, mas faz exatamente isso quando idealiza "a dama perfeita" para si, ou quando define que seu propósito na vida é atormentar as relações alheias.


No entanto, continua miserável sempre que retorna a fim de experienciar uma alternativa. Acontece que a realidade é bem mais simples: não é necessário 100 amigos para desfrutar da amizade, não é preciso voltar no tempo para ser capaz de experienciar realidades diferentes ou sentir-se liberto. O único pré-requisito é aceitar passionalmente a liberdade proporcionada pelo "agora", sem devaneios. Entende, depois, que o seu contexto era o menos importante.


Resolução.


"Não sei se esse mundo tem um sentido que o ultrapasse. Mas sei que não conheço esse sentido e que, por ora, me é impossível conhecê-lo. [...] Só tenho como compreender em termos humanos. O que toco, o que me resiste, eis o que compreendo."


"[...] só existe um luxo: o das relações humanas. Como não compreender que nesse universo vulnerável tudo o que é humano, e nada mais que isso, adquire um sentido mais acalorado? Rostos estendidos, fraternidade ameaçada, amizade tão forte e tão pudica dos homens entre si, são as verdadeiras riquezas, porque são perecíveis. É no meio deles que o espírito sente melhor os seus poderes e limites."


No momento em que está preso num "loop" de pequenas variações da sua vida (demonstradas no anime através dos detalhes em cada quarto que explora), inicialmente diz que não vê problema em sua enclausura, afinal, caso houvesse a opção de sair, ficaria em casa de qualquer forma. Mas rapidamente enjoa. Subestima a relevância da escolha, da diferença de estar trancafiado momentaneamente porque quer e indefinidamente porque é obrigado. Sente saudade do ar fresco, algo que nunca foi particularmente relevante antes. Percebe em toda a sua plenitude o que "aproveitar a oportunidade que está sempre bem na frente dos seus olhos" realmente significa. Não se resume a Akashi. Muito pelo contrário, trata de tudo: de sentir e experienciar ao máximo os seus arredores, as pessoas, os momentos, o tal ar fresco.


Uma vez que aceita o caráter absurdo de sua realidade, volta a atenção para as coisas simples da vida, que antes pareciam sem importância. As interações cotidianas subitamente são mais significativas do que qualquer ideal de propósito ou moralidade. Não existe um "campus cor-de-rosa", e isso é algo bom.





Autor: dorsk;
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